quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O desgaste e o manejo das palavras

A.P. Lima

O embaixador Gilberto Amado dizia que, dependendo das circunstâncias, todos são potenciais inimigos. Cada povo busca, no convívio inevitável com os outros, o poder e a liberdade. Nessa acepção, as palavras são instrumentos da diplomacia, na medida em que se destinam a convencer ou a impor uma vontade política. Ainda assim, vocábulos podem assumir outras finalidades. Quando morou na Espanha a serviço do Chile, o poeta e diplomata Pablo Neruda, usou a habilidade com as palavras como arma para compor “Espanha no Coração”, sobre a Guerra Civil Espanhola. Assim como ele, muitos foram e continuam sendo os diplomatas com talento para a escrita e para outras artes, mas, ao contrário do que ocorreu com Neruda, não é sempre que o viver no estrangeiro e a exigência intelectual do ofício conseguem estimular a criatividade desses profissionais.

Domício da Gama, Cardoso de Oliveira e Guerra Duval encaixam-se no grupo de diplomatas cujo trabalho reprimiu a aptidão artística. Nomes não muito conhecidos do público, esses diplomatas deixaram escritos importantes que praticamente caíram no esquecimento com o decorrer dos anos. A devoção dessas três figuras, no entanto, marcou a história do Itamaraty. No poema “Autopsicografia”, Fernando Pessoa diz que o poeta é um fingidor que finge tão bem que chega a fingir que é dor a dor que realmente sente. O mesmo acontece na diplomacia, na qual os negociadores acabam se convencendo pelas mesmas palavras que usam para persuadir os outros. A atividade é, certamente, desgastante, assim como é para os próprios poetas. Partidários do cartesianismo justificariam a supressão do poeta no diplomata dizendo que o interesse por atividades distintas significa dispersão. Para eles, não é possível ser hábil em mais de uma função. Ao contrário deles, Sérgio Buarque de Holanda lembra, em Raízes do Brasil, que o intelectual nativo procura conciliar divergentes correntes de pensamento, sustentando assim as convicções mais díspares. Apesar do historiador ver um aspecto positivo nesse fato, talvez ele se explique pelo grande interesse na produção intelectual de outros países e pela “experiência de caráter inautêntico da vida cultural que levamos”, questões abordadas por Roberto Schwarz em “Nacional por Subtração”.

Há quem defenda que o tempo no exterior pode arrefecer os laços sentimentais com a pátria mesmo em quem trabalha em defesa dos interesses nacionais. A assimilação cultural e o contato com outras maneiras de enxergar e interpretar o mundo, passos naturais no processo de adaptação ao estrangeiro, podem acarretar em desapontamento ou sentimento de não-pertencimento à terra natal. A nação deixa então de ser o objeto principal de inspiração desses indivíduos. Na história da diplomacia brasileira, houve tanto os que compuseram versos em francês quanto aqueles que destinaram suas obras ao público europeu.

Outros como Antônio Houaiss, José Guilherme Merquior e João Cabral de Melo Neto marcaram a história por deixar grandes legados fora do mundo diplomático. Graça Aranha é pouco lembrado pela influência na Semana de Arte Moderna de 1922, mas foi ele quem apresentou aos jovens modernistas da época idéias que assimilara durante a vivência na Europa. Um dos mais célebres diplomatas brasileiros é mais conhecido hoje pelas canções que deixou do que pelo trabalho desenvolvido no Itamaraty. Após o desligamento com o Ministério das Relações Exteriores, Vinícius de Moraes acabou por dedicar-se exclusivamente à arte, deixando grande contribuição para a música popular brasileira.

Manejar e manipular palavras, seja para persuadir o leitor, convencer-se a si próprio ou defender o interesse nacional, é tarefa fatigante, que pode abafar qualquer manifestação artística no diplomata. Não foram poucos os que tiveram seus talentos suprimidos em função da devoção ao ofício que cumpriram com esmero. Aos que deixaram contribuições na arte e na produção intelectual da nação também cabe o mérito do desenvolvimento da nação e da projeção do País em esfera internacional. Mesmo que por caminhos distintos, esses também cumpriram suas missões.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

O sentido da colonização

A.P.Lima

Em Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Júnior explica o atraso socioeconômico do País tendo em vista o tipo de colonização que se deu no nosso território. Para ele, a evolução de um povo ocorre em uma linha contínua de acontecimentos, que geralmente apontam para a mesma direção. Cada momento da história de uma nação faz parte de um todo. Dessa forma, o empreendimento colonial brasileiro insere-se no contexto do capitalismo mercantil europeu, cujo maior objetivo foi fornecer matérias-primas e gerar riqueza para a Europa. O Brasil cumpriu essa finalidade, primeiro fornecendo pau-brasil, açúcar, tabaco e outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois algodão; e então, já independente, café. Esse é o “sentido da colonização”.

A grande contribuição da obra do historiador é ter instaurado no Brasil a linha de análise marxista, que em vez de se preocupar com datas e dinastias, prefere analisar a organização social de um povo. O autor mostrou que o sistema econômico no qual estávamos inseridos é que nos destinava a ser uma sociedade inorgânica, e não teorias acerca do clima e da raça usadas anteriormente para justificar o atraso. Além disso, Prado Júnior extinguiu a idéia de que houvesse existido feudalismo durante o período colonial.

O intelectual compara as colonizações das áreas de clima tropical e subtropical com as zonas temperadas. O objetivo da colonização dos Estados Unidos e do Canadá até o século XVII seria o mesmo que havia por aqui, o da exploração. No entanto, a história desses países tomou um rumo distinto com a migração maciça de ingleses, franceses, alemães e suíços, que, com o intuito de fugir dos conflitos religiosos e políticos que ocorriam naquele momento na Europa, reconstruíram suas vidas no novo continente, erguendo nações à semelhança das potências européias. Ao contrário da Inglaterra, Portugal e Espanha, não contavam com população suficiente disposta a emigrar. Esses países ainda sofriam com as perdas populacionais acarretadas pelas pestes do século XIV e, desde o século XV, usavam mão-de-obra escrava em seus territórios. Sob esse aspecto reside outra diferença fundamental: nas zonas temperadas, o europeu teve que se sujeitar ao trabalho manual no início da colonização, enquanto nas áreas tropicais, o problema da escassez de mão-de-obra resolveu-se facilmente com o comércio de escravos e o aprisionamento de índios.

A tese do “sentido da colonização” influenciou, mais tarde, o pensamento cepalino e a teoria da dependência. O economista argentino e um dos fundadores da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), Raúl Prebisch, defendia que a divisão internacional do trabalho era extremamente desfavorável para os países em desenvolvimento, que ficariam então encarregados da exportação de produtos primários, enquanto os países ricos seriam responsáveis pela produção de bens industrializados. Isso aconteceria porque a tecnologia tende a elevar o valor dos produtos industrializados, criando uma desigualdade na receita adquirida por esses grupos de países. A teoria da dependência, por sua vez, trata das conseqüências da relação de subordinação de países periféricos em relação às economias centrais, que criavam teias de relações políticas e relações de interesse que moldavam formas determinadas de desenvolvimento político e social nos países "dependentes" ou "periféricos". Por outro lado, a partir dos anos 1970, surgem as primeiras críticas ao enfoque do “sentido da colonização”. Alguns autores defendem que o historiador subestimou o processo de industrialização no Brasil, enquanto outros apontam que a falha está em não compreender a importância do mercado interno que se formava com a acumulação de capitais originada, principalmente, pelo comércio de escravos.

Seja como for, um dos grandes méritos de Caio Prado Júnior foi ter iniciado a mudança de como se examina o Brasil. Apesar do apreço atual à história cultural em detrimento do estudo da análise econômica e da crise da historiografia marxista, a importância da obra do intelectual permanece, colocando-o ao lado de grandes intérpretes do País como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.

Bandeirismo: mitos e construção da identidade nacional

A. P. Lima

A história é construída por inúmeras versões e análises. Em Orientalismo, o crítico literário Edward Said chama atenção para a construção de mitos com o propósito de semear conceitos no imaginário popular e legitimar algumas medidas de política externa. Toda nação tem sua própria maneira de interpretar o passado, sendo que essa representação revela muito sobre a compreensão de um povo sobre o presente. Na história brasileira, o bandeirismo ajuda a elucidar os mitos da fundação do País e a busca por uma identidade nacional, que teve início com a Independência, no século XIX, e que, de alguma forma, persiste até os dias de hoje por meio do enaltecimento do índio e de críticas à influência externa e à globalização.

A análise mais decorrente acerca do bandeirismo é uma associação entre o movimento, a colonização e a delimitação das fronteiras nacionais. No entanto, além da expansão territorial, sua contribuição vai além, estendendo-se para a constituição de uma identidade brasileira. Livros como O Uraguai, de Basílio da Gama, e poemas como Vila Rica, de Cláudio Manoel da Costa, colaboraram na construção dessa imagem de heroísmo e de orgulho e amor à pátria. O escritor e jornalista Cassiano Ricardo, em Marcha para o Oeste, mostra que o bandeirismo representou uma flexibilização no “espírito luso” de estratificação social cristalizado no modelo da Casa Grande nordestina. Graças ao pioneirismo e à miscigenação, as bandeiras introduziam no imaginário popular um sentimento nacional e a possibilidade de flexibilização e ascensão social. Além disso, as expedições abriram uma brecha na estratificação da sociedade patriarcal em vigor, na medida em que os bandeirantes tinham jurisdição nos novos territórios conquistados.

O nacionalismo é um elemento fundamental na promoção do expansionismo, que não se concretiza sem o sentimento de pertencimento de um povo a um determinado território. Portugal exerceu um papel decisivo no estímulo das bandeiras, pois além das promessas de ouro e diamantes, foi responsável pelo mito da Ilha-Brasil, que seria um instrumento da legitimação dos territórios que, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, deveriam pertencer à coroa espanhola. Para o historiador Jaime Cortesão, a cartografia portuguesa sobre o Brasil difundiu a crença em uma entidade territorial envolta pelas águas de dois grandes rios, o Amazonas e o Prata, cujas fontes se encontravam em um lago unificador. No início do movimento das bandeiras, as expedições partiam em busca desse lago, que, com o decorrer do tempo, foi deslocado cada vez mais para o oeste, até que finalmente ganhasse contornos parecidos com os atuais. Dessa forma, o Brasil aparecia como realidade geográfica anterior à colonização, e a figura do bandeirante – destemido e aventureiro – dava unidade à noção de pátria.

Para o sociólogo Raymond Aron, a linha fronteiriça adequada é aquela reconhecida pelos estados vizinhos. Nisso, os bandeirantes alcançaram êxito extraordinário, pois além de desbravar as terras longínquas, foram também responsáveis pelo estabelecimento de colônias nessas áreas. Foi graças ao empreendimento bandeirante que o diplomata português Alexandre de Gusmão conseguiu integrar à União grande parte das terras que fazem parte do nosso território mediante o Tratado de Madrid (1750), que consagrou o princípio de uti possidetis, que dava a soberania dos territórios em litígio ao Estado que detivesse sua ocupação. O acordo entre Portugal e Espanha representou um antecedente para que o Barão do Rio Branco resolvesse as últimas disputas territoriais no País.

A visão geral do processo histórico brasileiro tende a limitar a contribuição do bandeirismo à expansão e à demarcação das fronteiras nacionais. Mais do que isso, o bandeirante deu forma ao conceito de nação por meio da unidade territorial, da miscigenação e da homogeneização e difusão cultural. O heroísmo e a personificação mítica dessa figura são os mesmos que justificam e enaltecem a conduta do malandro e a pureza e a condição de vítima do índio. Em comum há a originalidade, o fato de serem personagens próprios da nossa história, e a impossibilidade de sobrevivência em meio a regras e procedimentos morais exemplares.


domingo, 7 de outubro de 2007

Deu a louca no globo

O Estado de São Paulo
Data: 07/10/2007
Crédito: Sérgio Augusto

Mianmar ou Burma? Pequim ou Beijing? Mumbai ou Bombaim? A geopolítica nunca foi tão semanticamente complicada Sérgio Augusto Criticaram o presidente Bush por chamar Myanmar de Burma, a nossa velha conhecida Birmânia, onde há semanas o pau voltou a comer grosso. Em seu blog na revista The Atlantic Monthly, o jornalista James Fallows saiu em defesa do presidente, que, a seu ver, teria demonstrado respeito ao oprimido povo birmanês ao desprezar o nome imposto àquele país por uma junta militar, já lá se vão 18 anos.

Para Fallows, aceitar Mianmar significa curvar-se aos caprichos dos generais que se recusaram a dar posse e mantêm sob vigília a primeira-ministra (e Nobel da Paz de 1991) Aung San Suu Kyi. As corporações que lá mantêm negócios, como a General Motors, a Caterpillar e a UnoCal, continuam se lixando para as atrocidades dos milicos birmaneses e, mais ainda, para a controvérsia semântica em curso desde a semana passada.

Antes de erguer um brinde à sensibilidade e à coragem política de Bush, considere duas coisas: 1) a desimportância econômica de Mianmar (muito arroz, muito ópio, muitíssimo menos petróleo que o Iraque); 2) a dificuldade de Bush para pronunciar corretamente Myanmar (Burma é fácil).

Embora saiba pronunciar o novo nome da Birmânia, e até uma de suas variações: Mranma, também prefiro Burma. Mais por razões afetivas do que políticas. Cresci ouvindo falar em Burma e Birmânia, locação e referência em filmes como Objective Burma (Um Punhado de Bravos, 1945), A Harpa Birmanesa (1956) e A Ponte do Rio Kwai (1957). A ponte sobre o rio Kwai uniria a Birmânia ao Sião. Quando o filme foi rodado, Sião já era Tailândia havia oito anos, mas o país onde foram feitas as filmagens só deixaria de ser Ceilão (para virar Sri Lanka) 15 depois.

No globo terrestre, é grande e permanente a confusão nomenclatória. Só quem tem mais de 77 anos, por exemplo, pegou Constantinopla como a capital da Turquia. Só descobri, garoto ainda, que Istambul outrora se chamara Constantinopla num disco de Caterina Valente, em que também aprendi que Nova York fora, um dia, Nova Amsterdã. Com o surto de independência das colônias africanas e asiáticas, na virada dos anos 50 para os 60, e mesmo antes disso, nossos conhecimentos geográficos tornaram-se ainda mais precários. E os atlas passaram a sair da gráfica já ultrapassados.

Saiu Pérsia, entrou Irã. Onde antes ficava a Abissínia surgiu a Etiópia. Mali era o Sudão Francês. Em 1945, a capital da Indonésia dormiu Batavia e acordou Jacarta. A Indochina virou Vietnã. Ao Congo sucedeu o Zaire, embora Congo seja o nome “autêntico”. São Petersburgo voltou a ser São Petersburgo após ter sido Petrogrado e Leningrado. Rodésia e Basutolândia agora são, respectivamente, Zimbábue e Lesoto. Benin foi Daomé até 1975. Quando em suas savanas filmaram Hatari!, Tanzânia (ou Tanzanía, na pronúncia local) chamava-se Tanganica. Fui e voltei de um safári africano, em 1984, sem me dar conta de que, enquanto fotografava a bicharada no Quênia e Tanzânia, o presidente Thomas Sankara rebatizara o Alto Volta de Burkina Fasso.

O jornalista escocês Alex Massie entrou na discussão provocada por James Fallows e sugeriu que nos recusássemos a dizer Mumbai, em vez de Bombay (Bombaim), e Chennai, em vez de Madras. Crente que estava robustecendo seu argumento, perguntou se os povos de língua inglesa, por acaso, dizem Venezia, München e Köln, em vez de Venice, Munich e Cologne. Mais do que uma discussão bizantina, um festival de equívocos.

Primeiro equívoco: Mianmar não foi uma invenção do general Saw Maung e seus golpistas amestrados. Marco Polo já teria usado essa palavra, oito séculos atrás. Como a primeira tribo com que os indianos lá toparam não se chamava Mianmar, e sim Brahma, Brahma vingou e virou Burma (pronuncia-se Bã-ma), com o império britânico lá dando as cartas a partir de 1885. Burma, portanto, não é um nome “puro”, mas batismo colonialista - como Bombaim e Madras. Não bastasse, Mianmar é um termo mais inclusivo, pois os birmaneses constituem apenas uma parcela da população, dividida em diversas etnias.

O que fazer? Consultar a população sobre sua preferência, sondagem que a junta militar birmanesa na certa impediria. Ou adotar o que a ONU sancionou.

Dizem que Aung Suu Kyi prefere Burma. O jornal tailandês Bangkok Post continua chamando Mianmar de Burma e Yangon de Rangoon (Rangum). Pois é, até o nome da capital a junta mudou, assim como os de outras localidades: Arakan, Karemi, que há tempos se chamam Rahkine e Khayahn. Ainda bem que mantiveram Mandalay. Num e-mail ao New York Times, o birmanês Maung Lwin defendeu Burma, afirmando que seus conterrâneos ainda dizem “Bã-ma” e receiam ser identificados pelo gentílico “myanmese” - e apelidados de maionese. A ONU aceitou Mianmar.

Segundo equívoco: Mumbai e Chennai não foram impostos por um governo ilegítimo ou uma ditadura sanguinária. São opções nacionalistas, livremente implementadas e com base em identidades milenares e fidelidades lingüísticas, o oposto de Bombaim (corruptela do português “Boa Bahia”), Madras, Calcutá (agora Kolkatta) e Bangalore (oficialmente Bengaluru), denominações tão forasteiras quanto Flórida (era assim que os conquistadores espanhóis se referiam à América do Norte no século 16) e Virgínia (a versão britânica da Flórida espanhola). A propósito, Mumbai é uma homenagem a Mambadevi, uma deusa de pedra do século 3º.

Terceiro equívoco: por que não rejeitar todos os nomes de países e cidades estabelecidos por governantes que chegaram ao poder de forma ilegal e violenta? Sim, daria a maior confusão. E se ameaçasse os interesses das grandes corporações globalizadas, babau. Isso não significa que devamos nos bater para que a ONU, a Casa Branca e as nações livres do Ocidente se recusem a chamar Pequim de Beijing, Cantão de Guangzhou, Nanquim de Nanjing, e, em represália ao repressivo governo da China (Zhongguo para os nativos), adotem o nome pelo qual os tibetanos se referem ao monte Everest: Qomolangma (Mãe do Universo). Falando nisso, os nepaleses o chamam de Sagarmatha (Rosto do céu). Também serviria, caso a represália tivesse algum sentido prático.

Quarto equívoco: estão confundindo o que se supõe politicamente correto com meros casos de heteronomias e transliteração. Pequim (ou, à inglesa, Peking) não virou Beijing, nem Mao Tsé-Tung agora é Mao Zedong, por teimosia ou rompante autoritário dos chineses. Beijing, como Zedong, Guangzhou (ex-Cantão) e tantos outros vocábulos com os quais convivemos há mais de um século, não é um rebatismo, mas uma reanglicização mais próxima do foneticismo (ou da pronúncia) mandarim. Como não usa o alfabeto romano, a língua chinesa tornou-se escrava da transliteração. Há mais de um século, o sistema de romanização Wade-Giles dicionarizou Peking, Canton, Nanking, etc. Beijing é fruto do sistema mais moderno de Hanyu Pinyin. Que ninguém perca o sono por causa dessas bagatelas semânticas. Até porque, no Brasil, a gente não pede “Peking duck”, mas pato laqueado.



sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Paz e Guerra entre as Nações

1) Guerra absoluta e guerra real

Guerra absoluta: quando a violência é levada ao extremo e força a destruição de um dos adversários
Guerra real: confronto de coletividades, no qual cada uma delas se une e se manifesta com uma vontade.

* Definições de guerra: não é um ato isolado, que ocorre bruscamente, sem conexões com a vida anterior do Estado / é um jogo, exige ao mesmo tempo coragem e cálculo; este nunca chega a excluir o risco / é um ato político, surge de uma situação política e resulta de uma razão política
* A causa da guerra é a intenção hostil, não o sentimento de hostilidade (Clausewitz)
* A respeito dos povos civilizados, "a inteligência ocupa um lugar mais importante na maneira como fazem a guerra, ensinando-lhes a empregar a força de modo mais eficaz do que a manifestação do instinto". (Clausewitz)
* O elemento passional interessa sobretudo ao povo; o elemento aleatório, ao exército e ao seu comandante; o elemento intelectual, ao governo: este último é decisivo e deve ordenar o conjunto.
* "A guerra não é apenas um ato político, mas um instrumento real da política, uma busca de relações políticas, uma realização de relacionamento político por outros meios" (Clausewitz)
* A política parece desaparecer quando se adota como fim único a destruição do inimigo (mas mesmo assim ainda é política pois parte de uma decisão).
* Os Estados devem obedecer a política, isto é, à inteligência dos interesses duráveis da coletividade.

Estratégia (o comportamento relacionado com o conjunto das operações militares), Diplomacia (condução do intercâmbio com outras unidades políticas, convencer sem usar a força).

* Em tempo de paz, a política se utiliza de meios diplomáticos, sem excluir o recurso às armas, pelo menos a título de ameaça. Durante a guerra, a política não afasta a diplomacia, que continua a conduzir o relacionamento com os aliados e os neutros (e, implicitamente, continua a agir com relação ao inimigo, ameaçando-o de destruição ou abrindo-lhe uma perspectiva de paz).
* Impor-se é também um modo de convencer. Uma demonstração de força pode fazer com que o adversário ceda sua posição. Quem tem superioridade em armamento em tempos de paz convence os aliados, os rivais ou os adversários sem precisar utilizar suas armas. Inversamente, o Estado que adquire uma reputação de eqüidade e moderação tem maior probabilidade de alcançar seus objetivos sem precisar para isto da vitória militar. Mesmo em tempo de guerra, usará um processo de persuasão, no lugar da imposição.
* Estratégia e diplomacia valem-se uma da outra. Se a estratégia não tem função fora do teatro militar, os meios militares, por sua vez, são um dos instrumentos de que a diplomacia se utiliza. Inversamente, declarações, notas, promessas, garantias e ameaças fazem parte do arsenal do chefe de Estado, durante a guerra.
* Fator psicológico: "só é derrotado quem se reconhece como tal" (Clausewitz).



2) Estratégia e objetivo

* Relação entre estratégia e política: "a guerra deve corresponder inteiramente às intenções políticas; a política deve adaptar-se aos meios de guerra disponíveis" (Clausewitz). Ou seja, a política não pode determinar os objetivos sem levar em conta os meios disponíveis; por outro lado, a política "não penetra profundamente nos pormenores da guerra: não se colocam sentinelas nem se enviam patrulhas por motivos políticos. Mas a sua influência é absolutamente decisiva no plano do conjunto de uma guerra.
* A guerra exige um plano estratégico: "toda guerra deve ser compreendida antes de tudo à luz do seu caráter provável e dos seus traços dominantes, que podem ser deduzidos dos dados e das circunstâncias políticas". Exemplo: Em 1914, todos os beligerantes equivocaram-se a respeito da natureza da guerra. Em nenhum país o governo concebeu ou preparou a mobilização da indústria e da população.
* Risco das grandes guerras escaparem ao controle dos homens, sobretudo quando a paixão acaba tomando o lugar da política e a destruição do inimigo é associada à vitória. Estratégia e a consciência dos objetivos e motivações reais em jogo se perdem.
* A vitória (associada à destruição do inimigo ou anulação das forças do mesmo) não necessariamente é uma vitória. Ao fim da Primeira Guerra, a Alemanha continuou sendo um problema. Qual o custo da vitória? A maneira de conseguir a vitória influi necessariamente sobre o rumo dos acontecimentos.
* A condução da guerra, dentro de uma coalizão, deve levar em conta as rivalidades potenciais entre os aliados, além da hostilidade comum em relação ao inimigo. Há uma distinção entre aliados permanentes e aliados ocasionais.
* O crescimento de um aliado ocasional pode ser uma ameaça a médio ou longo prazo. Com efeito, os aliados ocasionais não têm outro laço senão o da hostilidade comum em relação a um inimigo cujo temor é suficiente para inspirar um esforço de acomodação de sua rivalidade.
* A Guerra da Coréia é um exemplo de guerra conduzida o tempo todo em função da política, sem se fixar exclusivamente na vitória militar. Já a conduta das duas guerras mundiais foi essencialmente militar, mas nem todos os atores se portaram dessa forma. Do lado soviético, a Segunda Guerra Mundial foi conduzida de modo essencialmente político, isto é, levando em consideração as conseqüências longínquas das hostilidades e vitórias. Os EUA não se perguntaram se a vitória militar seria favorável aos interesses duradouros do país. No entanto, mesmo se isso tivesse ocorrido talvez as conseqüências teriam sido as mesmas. A natureza de cada guerra depende de muitas circunstâncias que o estrategista precisa compreender, mas nem sempre pode mudar.


3) Ganhar ou não perder

* A escolha da estratégia depende ao mesmo tempo dos objetivos e dos meios disponíveis. Há guerras feitas em busca do exclusivo êxito militar e outras que tentam evitar a extensão do conflito.
* Quando a relação de forças é desigual, os estadistas podem ter como objetivo "não perder", desencorajando a vontade de vencer da coalizão superior.
* Guerras subversivas (aquela feita por uma população submetida a um regime colonial contra uma potência européia) - são intermediárias entre guerra civil e guerra externa porque o direito internacional reconhecerá essa guerra como civil, embora os rebeldes a considerem uma guerra externa. (...) Assimetria de forças, o governo legal leva vantagem. (...) O governo legal tem vontade de vencer, mas os rebeldes têm vontade de não se deixarem eliminar. (...) Mas por que razão os governantes legais aceitam a derrota política sem mesmo ter chegado a perder militarmente? (...)
* Administrar um território, hoje, é assumir a responsabilidade pelo seu desenvolvimento, o que muitas vezes custa mais do que as vantagens trazidas pela expansão do mercado ou a exploração das riquezas naturais. Não é de espantar que o colonizador possa cansar-se de pagar o custo da pacificação e, adicionalmente, dos benefícios em favor da população que resiste. Neste sentido, a derrota do poder colonizador, ainda quando é formalmente total (com a transferência da soberania para os rebeldes), não é sentida como tal pela metrópole.


4) Diplomacia e meios militares

* A política deve conhecer o instrumento a qual se vai servir (Clausewitz). Isso vale também para os tempos de paz.
* Na paz ou na guerra, diplomacia e estratégia são complementares. Ora domina uma, ora a outra, sem que nenhuma jamais se retire inteiramente, salvo nos casos de inimizade absoluta.
* Uma diplomacia que pretende agir sem contar com um exército efetivo é um pecado contra a racionalidade.
* Depois de 1945, a coordenação entre a diplomacia e a estratégia adquiriu características inéditas, devido a pluralidade das técnicas de combate (bomba atômica). Hoje, a natureza do conflito determina o tipo de armas utilizada. Antes, ela determinava o volume de forças engajadas e o coeficiente da mibilização nacional.
* Tudo indica que a condução das guerras será ainda mais política que no passado. Não se pensa mais em dar aos comandantes militares uma autonomia completa para ganhar a guerra, sem que importe como ou a que preço. A própria noção de "ganhou a guerra" provavelmente não é a mesma, e a questão do custo, que sempre existiu, tornou-se hoje decisiva: de que vale destruir o meu inimigo se ele pode também me destruir simultaneamente?
* Em 1960, o automatismo que se teme é o dos aparelhos eletrônicos e o dos planos estratégicos. Em 1914, os estadistas dispunham de alguns dias para tomar uma decisão. Em 1960, eles dispinham de alguns minutos.
* O primado da política permite, de fato, frear a escalada aos extremos, evitando que a animosidade exploda em paixão pura, numa brutalidade sem limites.


Fonte: "Paz e guerra entre nações", Raymond Aron, cap. 1

domingo, 19 de agosto de 2007

Política de fronteiras

Questão de Palmas (1895)

Países envolvidos: Brasil e Argentina

Área sob litígio: região oeste dos atuais Estados do PR e SC, entre os rios Peperi e Santo Antônio (hoje, Chapecó e Chopim ou Jangada). A área correspondia a 30.631 km².

Mediador: Barão do Rio Branco

Antecedentes: Tratado de Santo Ildefonso (1777), que devolvia Sete Povos das Missões (atual oeste do RS) à Espanha e fazia do Uruguai um rio exclusivamente espanhol até a foz do Peperi, não alterou o trecho da divisa estabelecido no Tratado de Madri (1750).

O primeiro tratado de 1889, mediado por Quintino Bocaiúva (então na pasta das Relações Exteriores), repartia o território contestado em duas partes iguais (gesto de fraternidade para apagar os resquícios do alegado imperialismo brasileiro). O acordo não foi bem recebido no Brasil e o Congresso Nacional não ratificou os termos do tratado, recomendando a volta ao recurso do arbitramento.

Interesses em jogo: A Argentina reivindicava parte do nosso território que, se obtida, deixaria o RS ligado ao resto do País por uma faixa pouco maior de 200 km. O RS era, na época, o Estado que merecia mais cuidados do Império: no começo do Império houve a Revolução Farroupilha (1834-1845) e, no começo da República, estava ocorrendo a guerra entre federalistas e republicanos (1893-1895). O envolvimento das tropas gaúchas em problemas das nações platinas e vice-versa, a similitude das formações sociais entre os gaúchos do Uruguai, da Argentina e do RS poderiam propiciar um futuro desejo de separatismo.

Árbitro: Grover Cleeveland (presidente dos EUA)

Resultado: totalmente favorável ao Brasil


Questão do Amapá (1900)


Países envolvidos: Brasil e França

Área sob litígio: Amapá
(na costa atlântica, a divisão foi fixada pelo Oiapoque e, no interior da Guiana, o limite foram os montes de Tumucumaque)

Mediador: Barão do Rio Branco

Antecedentes: divergências e acordos a respeito do território começaram muito cedo (desde o séc. XVII), houveram várias tentativas dos franceses de se apossar da região.

Argumentos da defesa brasileira: o objetivo básico do Barão era fazer valer o Tratado de Utrecht, favorável ao Brasil.

Árbitro: presidente do Conselho Suíço, Walter Hauser.

Resultado: totalmente favorável ao Brasil



Questão do Pirara (1904)

Países envolvidos: Brasil e Grã-Bretanha

Área sob litígio: região do Pirara (região ao leste de RR)

Mediador: Joaquim Nabuco (Barão do Rio Branco atuou como consultor técnico)

Antecedentes: problemas com a Guiana Britânica começaram no início do Segundo Reinado, quando o geógrafo e explorador Robert Herman Schomburgk, fomentou uma disputa fronteiriça com o Brasil.

Árbitro: rei da Itália Vítor Emanuel III

Resultado: divisão do território contestado em duas partes, sendo que a maior (60%) ficou com a Grâ-Bretanha.



Tratado de Petrópolis (1903):

Países envolvidos: Brasil e Bolívia

Área sob litígio: Acre

Mediador: Barão do Rio Branco

Antecedentes: A produção de borracha atraiu à Amazônia, entre 1860 e 1900, cerca de 500 mil nordestinos (principalmente cearenses). Antes disso, a região já atraía brasileiros devido à exploração das drogas do sertão. Havia um tratado que dava à Bolívia propriedade do território, mas os aventurados e nem mesmo ambos os países sabiam exatamente onde ficava a divisória.

No tratado de fronteiras com a Bolívia, assinado em 1867, o Brasil reconhecida a autoridade da Bolívia sobre a região. O governo brasileiro seguiu reconhecendo o fato através de vários atos apesar da maioria dos habitantes da região ser brasileiro.

A crise do Acre atingia seu ápice quando Rio Branco assumia o Itamaraty. Os rebeldes de Plácido de Castro venciam as tropas bolivianas no terreno. Antes disso já havia registro de outra tentativa separatista. No entanto, agora, a situação era mais séria. Num esforço para ocupar o território, a Bolívia cedera a exploração econômica da região a um consórcio anglo-americano, o "Bolivian Syndicate" (Bradford Burns). O efeito fora contrário ao desejado e acirrou ainda mais a revolta dos brasileros (presença de uma empresa estrangeira semi-soberana no centro da Amazônia).

Estratégia brasileira: Inicialmente, depois da Bolívia negar-se a vender o território, o Barão cuidara de isolar as outras duas forças interessadas na região (Peru e o Bolivian Syndicate). Ao Peru deu todas as garantias de que teria a maior consideração pelas suas reivindicações territoriais sobre o Acre, no caso de um acordo com a Bolívia. Sobre o Sindicato, o único interesse dos EUA é que s investidores americanos recebessem compensação justa. O Brasil assumiria a responsabilidade da Bolívia de ressarci-los.

No momento oportuno, muda radicalmente a posição tradicional da Chancelaria brasileira sobre o tratado de 1867. Agora, o território tornava-se litigioso.

Resultado: Pelo tratado, o governo boliviano cedia ao Brasil a maior parte do território em troca de compensações territoriais em vários trechos da fronteira com MT, a construção de uma estrada de ferro entre Porto Velho e Guajará-Mirim e indenização de dois milhões de libras esterlinas. O tratado, entretanto, foi muito atacado na época.


Tratado com o Equador (1904)

Tratado com a Colômbia (1907)

Tratado com o Peru (1909)

Na República, nosso maior problema de limites na Amazônia foi com o Peru, e não com a Bolívia.

Área: O Peru reivindicava no começo do século XX um território imenso que incluía não apenas o Acre (191 mil km²) , como o Sul do AM (442 mil km²).

Mediador: Barão do Rio Branco

Precedentes: Tratado de Santo Ildefonso (1777) favorecia o Peru, mais tarde, o Tratado de Limite de 1851, passava a favorecer o Brasil (?). O Peru também protestou com a assinatura do Tratado de Petrópolis pois também reivindicava a área em litígio.

Resultado: As regiões do alto Juruá e do alto Purus (39 mil km²) passavam à soberania peruana, já que se verificou serem os nacionais desse país que ocupavam as nascentes desses rios. Dessa forma, o Acre diminuía o seu território de 191 mil km² para 152 mil km², mas, em compensação, o Peru desistia de sua persistente e sempre incômoda reivindicação, baseada no Tratado de 1777, sobre os restantes 403 mil km² da área contestada.

Análise (do próprio Rio Branco): parecia que o Brasil ganhava muito, mas na verdade era o Peru que queria demais. "(isso) pode deixar a impressão de que o governo brasileiro se reservou a parte do leão. Nada seria menos verdadeiro ou injusto. Ratificando a solução que este tratado encerra (a questão das fronteiras no Brasil), o Brasil dará mais uma prova do seu espírito de conciliação, porquanto ele desiste de algumas terras que poderia defender com bons fundamentos em direito".

O Tratado com o Peru enterrava definitivamente Santo Ildefonso, e o Brasil se tornava o primeiro país sul-americano a ter seus limites reconhecidos por solenes e incontroversos tratados bilaterais.


Fonte: "Navegantes, bandeirantes, diplomatas", Synesio Sampaio Goes Filho (cap. 11)

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Nos bastidores

"Tenho horror ao Bush, horror pessoal. Tiveram o primeiro encontro na Casa Branca. "Bush se gabou de que seria conhecido como o maior poluidor do planeta. 'Vou abrir o Alasca para o petróleo. Podem reclamar, mas o mundo precisa que os EUA sejam fortes'. O incrível é que mesmo assim consegue ser um homem simpático que dão soquinho no ombro da gente. Mas não sabe nada. Uma hora, falei da nossa diversidade racial, os espanhóis, os portugueses, os japoneses... Ele perguntou: 'And do you have blacks?'. A Condoleezza deu um pulo: 'Senhor presidente, o Brasil tem a maior população de negros fora da África!'. Ele não sabe nada", recorda com desapreço.

FHC sobre Bush, Revista Piauí