domingo, 7 de outubro de 2007

Deu a louca no globo

O Estado de São Paulo
Data: 07/10/2007
Crédito: Sérgio Augusto

Mianmar ou Burma? Pequim ou Beijing? Mumbai ou Bombaim? A geopolítica nunca foi tão semanticamente complicada Sérgio Augusto Criticaram o presidente Bush por chamar Myanmar de Burma, a nossa velha conhecida Birmânia, onde há semanas o pau voltou a comer grosso. Em seu blog na revista The Atlantic Monthly, o jornalista James Fallows saiu em defesa do presidente, que, a seu ver, teria demonstrado respeito ao oprimido povo birmanês ao desprezar o nome imposto àquele país por uma junta militar, já lá se vão 18 anos.

Para Fallows, aceitar Mianmar significa curvar-se aos caprichos dos generais que se recusaram a dar posse e mantêm sob vigília a primeira-ministra (e Nobel da Paz de 1991) Aung San Suu Kyi. As corporações que lá mantêm negócios, como a General Motors, a Caterpillar e a UnoCal, continuam se lixando para as atrocidades dos milicos birmaneses e, mais ainda, para a controvérsia semântica em curso desde a semana passada.

Antes de erguer um brinde à sensibilidade e à coragem política de Bush, considere duas coisas: 1) a desimportância econômica de Mianmar (muito arroz, muito ópio, muitíssimo menos petróleo que o Iraque); 2) a dificuldade de Bush para pronunciar corretamente Myanmar (Burma é fácil).

Embora saiba pronunciar o novo nome da Birmânia, e até uma de suas variações: Mranma, também prefiro Burma. Mais por razões afetivas do que políticas. Cresci ouvindo falar em Burma e Birmânia, locação e referência em filmes como Objective Burma (Um Punhado de Bravos, 1945), A Harpa Birmanesa (1956) e A Ponte do Rio Kwai (1957). A ponte sobre o rio Kwai uniria a Birmânia ao Sião. Quando o filme foi rodado, Sião já era Tailândia havia oito anos, mas o país onde foram feitas as filmagens só deixaria de ser Ceilão (para virar Sri Lanka) 15 depois.

No globo terrestre, é grande e permanente a confusão nomenclatória. Só quem tem mais de 77 anos, por exemplo, pegou Constantinopla como a capital da Turquia. Só descobri, garoto ainda, que Istambul outrora se chamara Constantinopla num disco de Caterina Valente, em que também aprendi que Nova York fora, um dia, Nova Amsterdã. Com o surto de independência das colônias africanas e asiáticas, na virada dos anos 50 para os 60, e mesmo antes disso, nossos conhecimentos geográficos tornaram-se ainda mais precários. E os atlas passaram a sair da gráfica já ultrapassados.

Saiu Pérsia, entrou Irã. Onde antes ficava a Abissínia surgiu a Etiópia. Mali era o Sudão Francês. Em 1945, a capital da Indonésia dormiu Batavia e acordou Jacarta. A Indochina virou Vietnã. Ao Congo sucedeu o Zaire, embora Congo seja o nome “autêntico”. São Petersburgo voltou a ser São Petersburgo após ter sido Petrogrado e Leningrado. Rodésia e Basutolândia agora são, respectivamente, Zimbábue e Lesoto. Benin foi Daomé até 1975. Quando em suas savanas filmaram Hatari!, Tanzânia (ou Tanzanía, na pronúncia local) chamava-se Tanganica. Fui e voltei de um safári africano, em 1984, sem me dar conta de que, enquanto fotografava a bicharada no Quênia e Tanzânia, o presidente Thomas Sankara rebatizara o Alto Volta de Burkina Fasso.

O jornalista escocês Alex Massie entrou na discussão provocada por James Fallows e sugeriu que nos recusássemos a dizer Mumbai, em vez de Bombay (Bombaim), e Chennai, em vez de Madras. Crente que estava robustecendo seu argumento, perguntou se os povos de língua inglesa, por acaso, dizem Venezia, München e Köln, em vez de Venice, Munich e Cologne. Mais do que uma discussão bizantina, um festival de equívocos.

Primeiro equívoco: Mianmar não foi uma invenção do general Saw Maung e seus golpistas amestrados. Marco Polo já teria usado essa palavra, oito séculos atrás. Como a primeira tribo com que os indianos lá toparam não se chamava Mianmar, e sim Brahma, Brahma vingou e virou Burma (pronuncia-se Bã-ma), com o império britânico lá dando as cartas a partir de 1885. Burma, portanto, não é um nome “puro”, mas batismo colonialista - como Bombaim e Madras. Não bastasse, Mianmar é um termo mais inclusivo, pois os birmaneses constituem apenas uma parcela da população, dividida em diversas etnias.

O que fazer? Consultar a população sobre sua preferência, sondagem que a junta militar birmanesa na certa impediria. Ou adotar o que a ONU sancionou.

Dizem que Aung Suu Kyi prefere Burma. O jornal tailandês Bangkok Post continua chamando Mianmar de Burma e Yangon de Rangoon (Rangum). Pois é, até o nome da capital a junta mudou, assim como os de outras localidades: Arakan, Karemi, que há tempos se chamam Rahkine e Khayahn. Ainda bem que mantiveram Mandalay. Num e-mail ao New York Times, o birmanês Maung Lwin defendeu Burma, afirmando que seus conterrâneos ainda dizem “Bã-ma” e receiam ser identificados pelo gentílico “myanmese” - e apelidados de maionese. A ONU aceitou Mianmar.

Segundo equívoco: Mumbai e Chennai não foram impostos por um governo ilegítimo ou uma ditadura sanguinária. São opções nacionalistas, livremente implementadas e com base em identidades milenares e fidelidades lingüísticas, o oposto de Bombaim (corruptela do português “Boa Bahia”), Madras, Calcutá (agora Kolkatta) e Bangalore (oficialmente Bengaluru), denominações tão forasteiras quanto Flórida (era assim que os conquistadores espanhóis se referiam à América do Norte no século 16) e Virgínia (a versão britânica da Flórida espanhola). A propósito, Mumbai é uma homenagem a Mambadevi, uma deusa de pedra do século 3º.

Terceiro equívoco: por que não rejeitar todos os nomes de países e cidades estabelecidos por governantes que chegaram ao poder de forma ilegal e violenta? Sim, daria a maior confusão. E se ameaçasse os interesses das grandes corporações globalizadas, babau. Isso não significa que devamos nos bater para que a ONU, a Casa Branca e as nações livres do Ocidente se recusem a chamar Pequim de Beijing, Cantão de Guangzhou, Nanquim de Nanjing, e, em represália ao repressivo governo da China (Zhongguo para os nativos), adotem o nome pelo qual os tibetanos se referem ao monte Everest: Qomolangma (Mãe do Universo). Falando nisso, os nepaleses o chamam de Sagarmatha (Rosto do céu). Também serviria, caso a represália tivesse algum sentido prático.

Quarto equívoco: estão confundindo o que se supõe politicamente correto com meros casos de heteronomias e transliteração. Pequim (ou, à inglesa, Peking) não virou Beijing, nem Mao Tsé-Tung agora é Mao Zedong, por teimosia ou rompante autoritário dos chineses. Beijing, como Zedong, Guangzhou (ex-Cantão) e tantos outros vocábulos com os quais convivemos há mais de um século, não é um rebatismo, mas uma reanglicização mais próxima do foneticismo (ou da pronúncia) mandarim. Como não usa o alfabeto romano, a língua chinesa tornou-se escrava da transliteração. Há mais de um século, o sistema de romanização Wade-Giles dicionarizou Peking, Canton, Nanking, etc. Beijing é fruto do sistema mais moderno de Hanyu Pinyin. Que ninguém perca o sono por causa dessas bagatelas semânticas. Até porque, no Brasil, a gente não pede “Peking duck”, mas pato laqueado.



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