quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Bandeirismo: mitos e construção da identidade nacional

A. P. Lima

A história é construída por inúmeras versões e análises. Em Orientalismo, o crítico literário Edward Said chama atenção para a construção de mitos com o propósito de semear conceitos no imaginário popular e legitimar algumas medidas de política externa. Toda nação tem sua própria maneira de interpretar o passado, sendo que essa representação revela muito sobre a compreensão de um povo sobre o presente. Na história brasileira, o bandeirismo ajuda a elucidar os mitos da fundação do País e a busca por uma identidade nacional, que teve início com a Independência, no século XIX, e que, de alguma forma, persiste até os dias de hoje por meio do enaltecimento do índio e de críticas à influência externa e à globalização.

A análise mais decorrente acerca do bandeirismo é uma associação entre o movimento, a colonização e a delimitação das fronteiras nacionais. No entanto, além da expansão territorial, sua contribuição vai além, estendendo-se para a constituição de uma identidade brasileira. Livros como O Uraguai, de Basílio da Gama, e poemas como Vila Rica, de Cláudio Manoel da Costa, colaboraram na construção dessa imagem de heroísmo e de orgulho e amor à pátria. O escritor e jornalista Cassiano Ricardo, em Marcha para o Oeste, mostra que o bandeirismo representou uma flexibilização no “espírito luso” de estratificação social cristalizado no modelo da Casa Grande nordestina. Graças ao pioneirismo e à miscigenação, as bandeiras introduziam no imaginário popular um sentimento nacional e a possibilidade de flexibilização e ascensão social. Além disso, as expedições abriram uma brecha na estratificação da sociedade patriarcal em vigor, na medida em que os bandeirantes tinham jurisdição nos novos territórios conquistados.

O nacionalismo é um elemento fundamental na promoção do expansionismo, que não se concretiza sem o sentimento de pertencimento de um povo a um determinado território. Portugal exerceu um papel decisivo no estímulo das bandeiras, pois além das promessas de ouro e diamantes, foi responsável pelo mito da Ilha-Brasil, que seria um instrumento da legitimação dos territórios que, de acordo com o Tratado de Tordesilhas, deveriam pertencer à coroa espanhola. Para o historiador Jaime Cortesão, a cartografia portuguesa sobre o Brasil difundiu a crença em uma entidade territorial envolta pelas águas de dois grandes rios, o Amazonas e o Prata, cujas fontes se encontravam em um lago unificador. No início do movimento das bandeiras, as expedições partiam em busca desse lago, que, com o decorrer do tempo, foi deslocado cada vez mais para o oeste, até que finalmente ganhasse contornos parecidos com os atuais. Dessa forma, o Brasil aparecia como realidade geográfica anterior à colonização, e a figura do bandeirante – destemido e aventureiro – dava unidade à noção de pátria.

Para o sociólogo Raymond Aron, a linha fronteiriça adequada é aquela reconhecida pelos estados vizinhos. Nisso, os bandeirantes alcançaram êxito extraordinário, pois além de desbravar as terras longínquas, foram também responsáveis pelo estabelecimento de colônias nessas áreas. Foi graças ao empreendimento bandeirante que o diplomata português Alexandre de Gusmão conseguiu integrar à União grande parte das terras que fazem parte do nosso território mediante o Tratado de Madrid (1750), que consagrou o princípio de uti possidetis, que dava a soberania dos territórios em litígio ao Estado que detivesse sua ocupação. O acordo entre Portugal e Espanha representou um antecedente para que o Barão do Rio Branco resolvesse as últimas disputas territoriais no País.

A visão geral do processo histórico brasileiro tende a limitar a contribuição do bandeirismo à expansão e à demarcação das fronteiras nacionais. Mais do que isso, o bandeirante deu forma ao conceito de nação por meio da unidade territorial, da miscigenação e da homogeneização e difusão cultural. O heroísmo e a personificação mítica dessa figura são os mesmos que justificam e enaltecem a conduta do malandro e a pureza e a condição de vítima do índio. Em comum há a originalidade, o fato de serem personagens próprios da nossa história, e a impossibilidade de sobrevivência em meio a regras e procedimentos morais exemplares.


Nenhum comentário: