quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O desgaste e o manejo das palavras

A.P. Lima

O embaixador Gilberto Amado dizia que, dependendo das circunstâncias, todos são potenciais inimigos. Cada povo busca, no convívio inevitável com os outros, o poder e a liberdade. Nessa acepção, as palavras são instrumentos da diplomacia, na medida em que se destinam a convencer ou a impor uma vontade política. Ainda assim, vocábulos podem assumir outras finalidades. Quando morou na Espanha a serviço do Chile, o poeta e diplomata Pablo Neruda, usou a habilidade com as palavras como arma para compor “Espanha no Coração”, sobre a Guerra Civil Espanhola. Assim como ele, muitos foram e continuam sendo os diplomatas com talento para a escrita e para outras artes, mas, ao contrário do que ocorreu com Neruda, não é sempre que o viver no estrangeiro e a exigência intelectual do ofício conseguem estimular a criatividade desses profissionais.

Domício da Gama, Cardoso de Oliveira e Guerra Duval encaixam-se no grupo de diplomatas cujo trabalho reprimiu a aptidão artística. Nomes não muito conhecidos do público, esses diplomatas deixaram escritos importantes que praticamente caíram no esquecimento com o decorrer dos anos. A devoção dessas três figuras, no entanto, marcou a história do Itamaraty. No poema “Autopsicografia”, Fernando Pessoa diz que o poeta é um fingidor que finge tão bem que chega a fingir que é dor a dor que realmente sente. O mesmo acontece na diplomacia, na qual os negociadores acabam se convencendo pelas mesmas palavras que usam para persuadir os outros. A atividade é, certamente, desgastante, assim como é para os próprios poetas. Partidários do cartesianismo justificariam a supressão do poeta no diplomata dizendo que o interesse por atividades distintas significa dispersão. Para eles, não é possível ser hábil em mais de uma função. Ao contrário deles, Sérgio Buarque de Holanda lembra, em Raízes do Brasil, que o intelectual nativo procura conciliar divergentes correntes de pensamento, sustentando assim as convicções mais díspares. Apesar do historiador ver um aspecto positivo nesse fato, talvez ele se explique pelo grande interesse na produção intelectual de outros países e pela “experiência de caráter inautêntico da vida cultural que levamos”, questões abordadas por Roberto Schwarz em “Nacional por Subtração”.

Há quem defenda que o tempo no exterior pode arrefecer os laços sentimentais com a pátria mesmo em quem trabalha em defesa dos interesses nacionais. A assimilação cultural e o contato com outras maneiras de enxergar e interpretar o mundo, passos naturais no processo de adaptação ao estrangeiro, podem acarretar em desapontamento ou sentimento de não-pertencimento à terra natal. A nação deixa então de ser o objeto principal de inspiração desses indivíduos. Na história da diplomacia brasileira, houve tanto os que compuseram versos em francês quanto aqueles que destinaram suas obras ao público europeu.

Outros como Antônio Houaiss, José Guilherme Merquior e João Cabral de Melo Neto marcaram a história por deixar grandes legados fora do mundo diplomático. Graça Aranha é pouco lembrado pela influência na Semana de Arte Moderna de 1922, mas foi ele quem apresentou aos jovens modernistas da época idéias que assimilara durante a vivência na Europa. Um dos mais célebres diplomatas brasileiros é mais conhecido hoje pelas canções que deixou do que pelo trabalho desenvolvido no Itamaraty. Após o desligamento com o Ministério das Relações Exteriores, Vinícius de Moraes acabou por dedicar-se exclusivamente à arte, deixando grande contribuição para a música popular brasileira.

Manejar e manipular palavras, seja para persuadir o leitor, convencer-se a si próprio ou defender o interesse nacional, é tarefa fatigante, que pode abafar qualquer manifestação artística no diplomata. Não foram poucos os que tiveram seus talentos suprimidos em função da devoção ao ofício que cumpriram com esmero. Aos que deixaram contribuições na arte e na produção intelectual da nação também cabe o mérito do desenvolvimento da nação e da projeção do País em esfera internacional. Mesmo que por caminhos distintos, esses também cumpriram suas missões.